sábado, 18 de janeiro de 2014

POETA CASTRADO, NÃO!


Naquela madrugada, faz hoje 30 anos, Ary dos Santos morreu porque não queria estar mais vivo, ou como escreveu Baptista-Bastos, morreu de álcool, de desespero e de solidão.
Natália Correia tinha-o como um vulcão de afectividade, o jornalismo cultural tratou-o sempre com o desdém que reserva aos letristas eJ osé Saramago lembrou que numa terra de narcisistas, poetas ou comuns, que por isso mesmo não raro concitam contra si atitudes de rejeição, porventura justificadas , o Ary dos Santos fez de tão máximo defeito a sua máxima arma. Arma desarmada. Porque o Ary que nós conhecemos, invejado, troçado, desprezado, que ria de tudo isso, sacudindo a cabeça leonina, era, em qualquer canto desse quarto escuro onde nos fechamos nas horas más, um puto que esfregava os joelhos esfolados e engolia as lágrimas, heroizinho triste, e depois ia sentar-se a escrever versos, como quem escreve cartas, para a alegria, para a ternura, para o amor e a esperança. Versos que queriam ser uma voz e foram.


 Soneto presente

Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.


Estrela da Tarde tem música de Fernando Tordo.
Soneto Presente pertence ao livro Resumo (1973) e é tirado de Vinte Anos de Poesia, antologia de Ary dos Santos publicada pelo Círculo de Leitores, Maio de 1984

Legenda: fotografia tirada de Ary dos Santos, Fotobiografia de Alberto Bemfeita, Editorial Caminho, Lisboa Agosto de 2003..

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